
Avenida Paulista, São Paulo (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
Para muitos leitores a ideia de se ter uma marca para São Paulo pode parecer estranha e assustadora. Afinal, estamos acostumados a nos relacionar com marcas e produtos. Aliás, para muitos de nós, uma marca é um desenho que identifica uma empresa, um logotipo, algo sem importância e as marcas servem, quando muito, para ajudar-nos a decidir no momento da compra de algum produto num supermercado qualquer.
Não só marca não é o logotipo, como há muito tempo ela não é usada somente para facilitar a nossa vida. Historicamente, as marcas serviam como garantia de procedência, momento que remonta ao império romano e sua expansão, o que mostra que o pensamento em torno das marcas não é nada recente. Naquele momento bastava “marcar” o produto com a indicação do produtor e tudo estava resolvido. Portanto, naquele momento, marca era realmente um desenho, uma espécie de tetra-avô do logotipo. Embora milênios separem as primeiras ânforas de azeite identificadas do império romano, muitas empresas, empresários e, inclusive, profissionais do mercado, ainda entendem marca como logotipo.
“Marca não é logotipo, é o cumprimento de uma promessa”
Uma marca é o conceito por trás das organizações, seu conjunto de características intangíveis, sua identidade. Identidade é a palavra chave no universo de marcas e consumidores, algo que vai muito além do logotipo (ainda que chamado de identidade visual). A identidade de uma marca é a somatória de suas características próprias, intransferíveis. Identidade é singularidade.
O que começou como certificado de origem e depois se transformou em diferencial competitivo, hoje é um elemento de conexão, de identificação. Marty Neumeier, em seu recente livro The Brand Flip, ainda sem tradução para o português, sugere que não compramos mais marcas, aderimos a uma marca. Nesse sentido, marca é identificação, nos relacionamos (e não mais só consumimos) com marcas com as quais nos identificamos. Você mesmo, ao ler esse artigo, deve estar cercado por elas. A disciplina que constrói, gerencia e fortalece as marcas é chamada de branding.
“Branding é a gestão da dinâmica de relacionamento entre marcas e pessoas, e, em última instância, entre pessoas da marca e pessoas da audiência”
Mas o que as cidades tem a ver com isso?
As cidades, assim como as marcas de consumo, estão sujeitas à concorrência em um ambiente, por sua vez, substancialmente mais complexo. As marcas-lugar, por sua vez, têm pouca semelhança com as marcas de consumo e, embora o conceito tenha nascido com as marcas-país, importando as características do branding corporativo para a discussão dos lugares, hoje já podemos dizer que o conceito de marca-lugar é uma expertise por si só.
Atualmente existem várias denominações para se trabalhar com marcas lugar (todas sem tradução) sendo elas city branding, nation branding e place branding. O termo place branding, por ser mais abrangente e sem limitações geográficas evidentes, vem se tornando mais popular entre praticantes e pesquisadores de todo o mundo, que já compreendem que o place branding pode ser utilizado em escalas que vão de praças e ruas a países.
“O Place Branding é o processo de identificar vocações, potencializar identidades e desenvolver ideias capazes de transformar e alavancar os lugares por meio da identificação entre moradores, empresários locais e poder público, criando uma experiência única para moradores e visitantes.”
Como podemos ver pela definição acima, o place branding é muito mais do que um logotipo novo para uma cidade. Mudar uma identidade visual, por si só, não traz nenhum tipo de benefício para um lugar, independente de sua escala e de quanto foi gasto no processo. Seja um processo interno ou uma contratação caríssima, isso ocorre pelo simples fato de que um logotipo sozinho não é capaz de transformar um lugar, quando muito ele está relacionado a um novo governo, e geralmente causa a impressão de que o dinheiro público está sendo gasto de forma fútil com “publicidade”.
Uma nova identidade visual só faz sentido para um lugar se for resultado de um processo mais profundo, de reflexão sobre as características identitárias, sobre a vocação do lugar, processo que deve incluir a sociedade.
Cidade não são empresas
Sem entrar nas implicações políticas óbvias que o título retoma, é importante refletir sobre as diferenças entre esses dois organismos. De forma muito resumida, podemos dizer que, enquanto uma empresa tem funcionários e clientes, uma cidade tem cidadãos e contribuintes. Pode não parecer muita coisa, mas imagine um caso hipotético, em que uma pessoa perde seu emprego.
Existe uma grande possibilidade desse emprego ser reposto ainda na mesma cidade onde esse profissional mora, ou ainda nas proximidades. Se, na outra ponta, você for um consumidor e a sua marca do “coração” tomar uma atitude que a tire completamente do caminho e a sua relação de identificação fique estremecida, você pode, às vezes muito facilmente, substituir a marca esquizofrênica por uma outra do segmento, uma vez que você não se identifica mais com ela.
Agora, imagine o mesmo caso envolvendo uma cidade. Imagine que a gestão municipal “posicionou” a cidade num caminho completamente alheio à vontade da população e, ainda por cima, não lhe envolveu no processo (de verdade, consulta pública pro-forma não conta). Você simplesmente pega suas coisas e sua família e vai para a cidade vizinha? Não é tão simples assim. Na verdade, quanto mais vulnerável for a família, mais complicado deixar para trás a “rede de apoio” consolidada no lugar onde se vivia até então. Claro, sempre se pode argumentar que nenhuma atitude do poder público é suficientemente forte a ponto de fazer com que as pessoas queiram deixar sua cidade. Será mesmo?
Hoje, as empresas mais contemporâneas já começaram a envolver de fato seus funcionários (colaboradores, como muitas preferem se referir) nas decisões corporativas, sistemas de governança foram criados e modelos de gestão horizontal testados.
Mas porque essa preocupação com as pessoas “gostarem” da cidade onde moram ou da empresa onde trabalham? Pelo simples fato de que a felicidade, isso mesmo, a felicidade das pessoas passou a ser ativo perseguido por empresas e, claro, as cidades não ficaram para trás. Quando vemos rankings de melhores lugares para se trabalhar ou quando ficamos com inveja de relatórios como o Happy Danes, a respeito dos índices de felicidade da Dinamarca, estamos lidando com a imagem projetada daquelas marcas, sejam elas marcas de produto ou marcas-lugar. Lembram da marca como certificado de procedência dois mil anos atrás, então, nada menos disruptivo do que isso.
Outra característica que reforça a complexidade das cidades como objeto do branding é o stakeholder circle que atua sobre o place branding, sensivelmente maior, que envolve moradores, turistas, poder público, comerciantes, empresários, investidores, talentos…Aliás, um dos objetivo do place branding é justamente criar vetores de desenvolvimento econômico capazes de fortalecer moradores, atrair turistas, criar divisas para a municipalidade, cenário positivo para comerciantes e empresários, atrair investidores, atrair e reter talentos.
“Place branding é sobre pessoas e sobre resiliência”
Uma marca chamada São Paulo?
Assunto comum em aulas e conferências sobre marca-lugar é a busca por exemplos de place branding no Brasil. De fato são raros. Mas, afinal, existem marcas-lugar no país? Sim, existem, mas elas são resultado de um processo colaborativo de place branding que avalia identidades culturais, vocações, singularidades? Não, são as chamadas marcas “orgânicas”, termo usado pra caracterizar as marcas-lugar que “nasceram” de um processo não planejado, ou pelo menos, não planejado com as características que definem o place branding. Isso não significa que essas marcas “inatas” estejam erradas, mas se as audiências se relacionam com aquilo que se identificam, é de se imaginar que uma característica desejável para uma marca-lugar seja a autenticidade, que está diretamente ligada à vocação e à identidade.
Pode-se criar uma história (já que não se pode mais usar o termo “estória” muito mais aderente), ou o famoso storytelling, mas, justamente por não envolver todos os stakeholders, uma história sozinha também não é capaz de transformar. Ela pode, sim, criar atratividade para turistas ou para um recorte específico da sociedade, o famoso nicho. Ao olhar só para um nicho (lembrando que cidades não são empresas), essa marca-lugar é capaz de transformar a realidade dos envolvidos?
“ Uma cidade só é boa para o visitante se for boa para o morador”
Essa conversa de identidade, vocação, pode funcionar muito bem em pequenas cidades, mas como ficam as metrópoles? Ficam da mesma forma, só que dentro de algumas características comuns a todas as metrópoles.
Nova Iorque, Tóquio, Londres, Paris, todas são cidades globais, termo introduzido por Saskia Sassen, que se referia, originalmente a Londres, Nova Iorque e Tóquio, e reforça a relação das cidades ao efeito direto sobre os assuntos globais. Embora uma característica sedutora, essa não é a singularidade de todas elas, é muito mais uma característica que as une, do que uma que as diferencia.
São Paulo, que pertence ao rol das cidades globais, é um dos casos de marca-lugar “orgânica”. Embora forte, essa marca ainda faz muito pouco por grande parte de suas “partes interessadas”.
Pensar numa marca para São Paulo é pensar na pluralidade e na globalização, mas não só nisso, afinal, essas características são comuns a muitas metrópoles. Pensar São Paulo é pensar em cada característica que forma o mosaico multicultural da cidade, é compreender a “cola” que mantém as diversas cidades dentro da cidade unidas. Entender a cola é entender o que faz da Mooca, embora na Zona Leste da cidade, um bairro à parte, com características próprias. É entender as características mais óbvias da Liberdade ou do Tremembé ou o clima de cidade do interior de partes da Zona Norte, assim por diante.
Antes de entender a marca São Paulo como um todo é preciso entender suas partes. Feito isso, é preciso sobrepor todos esses mapas afetivos e simbólicos e localizar sua resultante, os elementos comuns a todos esses lugares. Essa resultante indicará um possível vetor de identidade comum, compartilhada. Esse é o ponto de partida para uma marca complexa como São Paulo. Esse ponto de partida deverá ser alinhado com o planejamento estratégico da cidade, ou seja, primeiro levanta-se a identidade, consolida-se a ideia e depois a municipalidade se preocupa em promover essa singularidade.
Tudo isso engajando os diferentes stakeholders no processo. Parece difícil? O engajamento é certamente a parte mais delicada, mas afinal de contas place branding é sobre lugares e, como pessoas fazem os lugares, place branding é sobre pessoas.
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Caio Esteves é arquiteto e urbanista, pós- graduado em branding. Fundador da Places for Us, primeira empresa especializada em Place Branding do Brasil. Colaborador e membro do conselho consultivo do City Nation Place, congresso internacional de place branding em Londres e Membro do Institute of Place Management de Manchester. Coordenador do MBA Place Branding da Rio Branco e coordenador do MBA Branding Experience no IED-SP, além de professor nos cursos de pós-graduação do IED-SP, Rio Branco- SP e Alfa- GO.
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