Joinville carrega consigo o título de “cidade das bicicletas”. Não é pouco, diante do longo caminho que as cidades brasileiras ainda precisam percorrer até serem reconhecidas como terreno fértil para esse meio de transporte. Mas a designação não é uma coquista recente. Como bem retratado no documentário “As Bicicletas e a Cidade“, de Fellipe Giesel, a história da cidade mais populosa de Santa Catarina se fez sobre duas rodas – mas isso não quer dizer que o município passou alheio à invasão dos carros.
Até os anos 1980, 30% dos deslocamentos eram feitos de bicicleta. No começo dos anos 2000, esse índice caiu para 4%. Hoje, a bicicleta representa 11% dos deslocamentos (a média geral do país é de 6% e a de cidades com mais de 500 mil habitantes, de 3%). Embora não existam registros conclusivos, imagina-se que na primeira metade do século XX a porcentagem tenha sido bem maior, graças ao gosto – e À falta de outras opções – dos operários da indústria da cidade, que chegavam a formar congestionamentos de bicicletas.
Ao trilhar uma linha do tempo, o filme de Giesel mostra claramente como a Cidade das Bicicletas ganhou o título e também como ele quase deixou de fazer sentido. Uma reportagem de 1975, no jornal A Notícia, registrava o seguinte título: “Automóveis atrapalham bicicletas”. Durante a pesquisa, Giesel vasculhou o arquivo histórico da cidade na construção da narrativa. “Há uma coincidência, que não é por acaso, mas os acidentes com bicicletas começam a aparecer com maior frequência nos jornais justamente a partir de 1964, o início da ditadura militar, que reforçou a política econômica de Juscelino Kubitschek baseada na indústria automobilística”, explica Giesel.

As bicicletas começaram a perder espaço em Joinville conforme aumentou a proporção de carros nas ruas. Na foto, a Rua Mario Lobo na década de 1960 (Foto: divulgação)
A bicicleta permeou o cotidiano de Joinville por toda a sua história. Os aniversários da cidade geralmente contavam com grandes desfiles de ciclistas, os bombeiros voluntários utilizavam bicicletas e os operários das fábricas viraram atletas e vencedores de importantes competições. As bikes também transformaram-se em arte na mão de Juarez Machado, que hoje tem um instituto com o seu nome na cidade. A crítica de Curitiba chegou a chamá-lo de surrealista por ter pintado pessoas pedalando com guarda-chuvas nas mãos no premiado Operários do Itaum, de 1961. “Mal sabiam que aqui todo mundo andava de guarda-chuva”, conta Machado no documentário.

Como se vê nesta foto de 1929, nem mesmo as enchentes impediam os ciclistas de circular (foto: divulgação)
Hoje, 52% dos ciclistas de Joinville usam o veículo para o lazer, enquanto 25% pedalam ao trabalho e 11% para ir à escola. A presença cada vez maior dos carros, ao longo dos anos, foi tirando o protagonismo da bicicleta na cidade. Ainda falta consciência dos motoristas na hora de compartilhar os espaços das ruas, como ocorre Brasil afora. “Tem muitas pessoas mais velhas, que vivem o saudosismo, que falam com orgulho da Cidade das Bicicletas, mas não são pessoas que moram na periferia e precisam ir de bicicleta até a região central”, lembra Giesel. “Ainda impera uma visão de que é necessário uma ciclovia para que o ciclista use o espaço público”, completa.
No filme, a partir do uso de uma câmera com o ponto de vista dos ciclistas, são retratados personagens de diferentes origens e idades, criando uma visão subjetiva da experiência de pedalar na cidade. A imagem abaixo, por exemplo, retrata como em muitos casos o espaço para quem pedala ainda é restrito.

Um dos personagens do filme durante seu deslocamento diário em Joinville (foto: divulgação)
As metas de Joinville para que a bicicleta reassuma sua posição de destaque são ambiciosas. O Plano de Mobilidade da cidade prevê que a bicicleta responda por 20% dos deslocamentos até 2025 e que os atuais 156 km de vias exclusivas para ciclistas sejam ampliados para 730 km. O planejamento é o primeiro passo para que a Cidade das Bicicletas se reencontre com a sua vocação.
O filme está disponível no Youtube.
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