
Participantes do Seminário Mobilidade Urbana e a Perspectiva das Mulheres, organizado pelo WRI Brasil Cidades Sustentáveis. (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil Cidades Sustentáveis)
Se nas ruas as mulheres não são minoria, no âmbito institucional e nas esferas de poder, são. Decisões que afetam um país inteiro seguem sendo tomadas sem a participação de sequer uma mulher. Políticas públicas ligadas à questão de gênero no Brasil e no mundo são ainda muito escassas e aquém da necessidade. A forma como uma cidade se move e cresce tem a participação direta da parcela feminina da população e poderia ter ainda mais se elas fossem ouvidas.
Ao fazer um estudo sobre os padrões de deslocamento da região metropolitana de São Paulo, a engenheira e pesquisadora Haydée Svab, da Escola Politécnica da USP (Poli-USP), concluiu que as mulheres são maioria no transporte coletivo e também no transporte a pé. Os homens predominam apenas no transporte motorizado individual – o modal cada vez mais insustentável nas cidades. Haydée baseou sua pesquisa em dados coletados desde 1977 e observou que essa tendência vem desde lá. Não é uma novidade.
Na pesquisa “Evolução dos padrões de deslocamento na Região Metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero”, Haydée destaca três variáveis que mais impactam nos padrões de mobilidade das mulheres: grau de instrução, presença de crianças entre cinco e nove anos na família e renda familiar. Elas também percorrem distâncias menores do que a dos homens, o que pode indicar maior acesso deles à cidade, segundo as conclusões de Haydée.
As mulheres se deslocam também por mais razões do que os homens. As viagens deles, em sua maioria, são motivadas pelo trabalho. Nas motivações de deslocamentos das mulheres aparece o trabalho, mas também ocorrem com muito mais frequência idas às escolas, creches, farmácias, supermercados, lojas e postos de saúde. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera as atividades domésticas na Síntese de Indicadores Sociais – Uma análise das condições de vida da população brasileira. Segundo os resultados, as mulheres trabalham cinco horas a mais que os homens, se somadas a ocupação remunerada e as atividades domésticas.
Esses afazeres influenciam muito mais nos deslocamentos das mulheres, aumentando a necessidade de viagens delas. Ainda assim, pouco é pensado para a mobilidade urbana delas. Mais de 40% do mercado de trabalho brasileiro é ocupado por mulheres. Uma das principais ações tomadas para melhorar a mobilidade urbana das mulheres no Brasil, o vagão exclusivo, foi a tentativa de amenizar apenas um dos problemas mais recorrentes: o assédio nos metrôs e trens. Porém, como colocar quase metade dos trabalhadores em alguns vagões? Como tratar apenas parte do problema será uma solução?
Em entrevista ao TheCityFix Brasil, Haydée falou sobre algumas dessas questões e outros aspectos do tema. Confira.
Ainda que as mulheres utilizem mais o transporte público e andem a pé, você acha que a mulher é ouvida ou inserida no planejamento dos sistemas de transporte e dos planos de mobilidade?
Em relação ao planejamento urbano, de transporte e de mobilidade, falta um sistema de participação social para todos grupos e não apenas para mulheres. Nosso país tem uma tradição, equivocada, de que os técnicos são os únicos habilitados a fazer planos e que a população é leiga e, portanto, inapta a opinar. Esse tipo de pensamento já se demonstrou, além de ultrapassado, ineficaz na produção de boas soluções, seja de produtos, de serviços ou de cidades. Ouvir, aceitar inputs, dar voz a todos segmentos sociais, quando é feito, se mostra um caminho muito acertado. Pode ser mais longo, mas tende a ser mais perene, porque quem se envolve na solução, depois fiscaliza sua implementação e cuida do resultado final.
Como consequência dessa tradição pouco democrática no planejamento, sob a ótica das mulheres observamos que há menor participação feminina no planejamento dos transportes e das cidades, desde os cargos técnicos, que ficam mais abaixo na pirâmide hierárquica, até os principais e estratégicos, como secretários e diretores de empresas de transporte, de planejamento e de obras. Então não temos mulheres (ou temos poucas, sempre como exceção) em lugares de tomada de decisão e também não contamos com mecanismos participativos de formulação das políticas públicas. O resultado disso vemos cotidianamente: uma cidade excludente. Excludente para mulheres, para pessoas com mobilidade reduzida e que penaliza muito a população periférica, entre outros grupos.
As políticas públicas que já existem hoje direcionadas às questões de gênero são pensadas da maneira correta? Estão indo pelo caminho certo?
Na área de transportes é dada pouquíssima atenção para as questões de gênero. E quando se discute isso, geralmente se pensa nas questões urgentes e emergentes, como a violência contra a mulher nos espaços públicos, como a calçada (que é uma via de transporte de pedestres); ou ainda no transporte público, refletidos nos inúmeros casos de assédio. Para essas questões temos visto iniciativas dos governos, nem sempre felizes. Tomemos por exemplo o caso do “vagão rosa”, que é uma vagão segregado para proteger as mulheres de assédio nos transportes sobre trilhos. Essa medida causou e causa muita polêmica porque foi adotada em alguns metrôs (Rio de Janeiro e Brasília) e não em outros (São Paulo), indicando que não há consenso sobre sua efetividade, e porque age sobretudo na consequência do problema, coibindo um possível contato entre homens e mulheres, e não na causa, que é uma endêmica falta de respeito do homem com a mulher (fenômeno também conhecido como machismo). Nossas políticas públicas também não conseguem ir além e atuar na prevenção da violência contra a mulher, já exemplificada anteriormente, com campanhas de educação que cheguem nas escolas, por exemplo.
E, indo mais à frente ainda, ainda não conseguimos pensar um desenho de cidade e uma engenharia urbana que considere a diversidade que apresentamos. Não conseguimos um certo ordenamento urbano que proporcione a oferta de oportunidades (trabalho, escola, lazer, etc.) mais homogeneamente distribuídas no espaço.Principalmente se considerarmos que acabam sendo as mulheres as principais responsáveis pelos cuidados com crianças e idosos, o que lhes restringe seu potencial de deslocamento. Precisamos evoluir inclusive no design, também nos transportes, de forma a considerar especificidades de gênero. Por exemplo, apesar dos primeiros testes de colisão com carros datarem da década de 1950, até pouco tempo atrás não se considerava a anatomia de mulheres grávidas no design de cintos/sistemas de segurança de carros porque os modelos de testes não tinham entrada para esses parâmetros – somente em 2002 a Volvo desenvolveu uma manequim em sua 36 ª semana de gravidez para efetuar os testes. Portanto, (não só) as políticas públicas (e não só) no Brasil são historicamente deficientes no que diz respeito às questões de gênero.
Como você acha que o planejamento ou o desenho das cidades pode influenciar no comportamento das pessoas em relação aos meios de transporte?
Acho que a pergunta deveria ser: “Como alguém acha que o planejamento ou o desenho das cidades pode não influenciar no comportamento das pessoas em relação aos meios de transporte?” Veja, os sistemas de transporte existem porque as pessoas se deslocam, e as pessoas se deslocam porque querem fazer atividades em diferentes localidades. Se não houver preocupação e incentivos para tornar as localidades atrativas (com residências, empregos, serviços, etc.), seguras e agradáveis, as pessoas não estarão dispostas a ir ou ficar nessa localidade. Se não conseguirmos produzir esse tipo de espaços de forma distribuída na cidade, concentrando empregos na região sudoeste de São Paulo, por exemplo, iremos obrigar a quantidade de pessoas equivalente à população do Uruguai a fazer um movimento pendular diariamente. Logo, é evidente que o planejamento urbano e o de transportes deveriam andar par-e-passo, juntos, embora não seja o que ocorreu na maior parte das cidades brasileiras.
Qual a sua opinião sobre a quantidade de pesquisas com foco em gênero e transporte atualmente no Brasil? Você acha que já se debate o tema da maneira que deveria?
Em 2013, quando comecei a fazer meu mestrado sobre mobilidade e gênero, não havia muito mais de um par de pesquisas sobre isso no Brasil. Hoje, quase qutro anos depois, além da minha, já existem várias pesquisas concluídas e em andamento. Então, se a quantidade ainda é tímida, o crescimento dessa área de pesquisa é inegável e necessário.
Outro aspecto a considerar é a qualidade e impacto que tais pesquisas conseguem gerar e não apenas a quantidade de pesquisas e/ou artigos produzidos. Nesse sentido, não há como descontextualizar essa área das demais áreas de pesquisa: ela se dá majoritariamente dentro das universidades e essa ligação entre conhecimento produzido pela academia e política pública implementada sempre foi deficiente. Por outro lado, trata-se de uma área muita ligada ao ativismo, que gera uma pressão por mudanças concretas – o que pode ser bastante positivo. Sobre a forma como o tema é discutido, entendo que precisamos ainda qualificar muito o debate e acho que é exatamente esse o movimento que vem ocorrendo nos últimos anos.
Confira aqui a apresentação de Haydée durante o Seminário Mobilidade Urbana e a Perspectiva das Mulheres, organizado pelo WRI Brasil Cidades Sustentáveis, e realizado em dezembro de 2016.