Existem lugares no mundo em que nenhuma morte relacionada a acidentes de trânsito é registrada em um ano inteiro. Em que notícias sobre fatalidades nas estradas quase não chocam mais. No Brasil, hoje, noticiar zero mortes no trânsito surpreenderia mais do que o contrário. Isso é resultado da irresponsabilidade ao volante, da falta de planejamento urbano e viário, de falhas nas leis de trânsito, entre outros motivos. O sistema viário atual influencia diretamente na saúde da população e apenas novas políticas públicas podem mudar esse cenário.
Com a ideia central de que “nenhuma morte é aceitável”, a Visão Zero é uma iniciativa concebida na Suécia em 1994 e transformada em lei três anos depois no país. Ela surgiu do entendimento de que apenas reduzir as mortes no trânsito não é suficiente. O objetivo e os esforços da Suécia são para chegar a zero fatalidades nas ruas e estradas. Conforme seus princípios, a mobilidade deve estar incluída no planejamento de saúde pública.
A política também salienta a responsabilidade do desenho viário nos acidentes e não apenas a do motorista. “Em qualquer situação uma pessoa pode falhar – o sistema viário não deveria”, diz um dos princípios da Visão Zero. O berço da iniciativa registra hoje 2,8 mortes a cada 100 mil habitantes. Graças ao sucesso do programa, foram abertos escritórios em mais de 60 países e a ideia gera inúmeras redes de trabalho.
Uma delas, a Vision Zero Network, dos Estados Unidos, realizou o estudo “O papel central da saúde pública na Visão Zero“, que analisa como três cidades – São Francisco, Nova York e Chicago – utilizam ferramentas de saúde pública para avançar seus esforços para erradicar as mortes no trânsito. Os três implementaram ações que podem ser replicadas no mundo todo.
São Francisco usou a tática de encontrar padrões: onde ocorrem as colisões, os fatores que as causam, os envolvidos, a severidade dos feridos etc. Para isso, a cidade criou um novo sistema de cadastro para os hospitais e a polícia registrarem os acidentes e suas particularidades. O plano de São Francisco garante que as lesões provocadas pelos acidentes possam ser analisadas de forma progressiva. Para Leilani Schwarcz, epidemiologista do programa, as cidades precisam agir para alcançar a meta do Visão Zero da mesma forma como trabalham para prevenir a propagação de uma doença infecciosa.
Em Chicago, mais de 130 organizações se uniram para criar o Healthy Chicago 2.0, um plano de quatro anos com metas e estratégias para guiar o Departamento de Saúde Pública da cidade. O trabalho é fundamentado no entendimento de que a saúde é influenciada por fatores que um médico nem sempre consegue tratar. Isso inclui o nível em que nos sentimos seguros e conectados em nossos bairros. O órgão executou todo o seu planejamento com a participação do departamento de transportes para alinhar os objetivos da Visão Zero em ambos. Hoje, a estratégia oficial de saúde pública de Chicago inclui a eliminação de lesões graves e fatalidades como elemento central para garantir a saúde de toda a população. O plano identifica os muitos fatores que fazem as ruas não seguras: violência, desenhos das vias que não acomodam todos os usuários, calçadas e vias com falhas de manutenção, entre outros.
A cidade de Nova York percebeu que alcançar a meta da Visão Zero envolvia muitas perguntas. Criou, então, um programa para articular as questões mais urgentes em relação à iniciativa Visão Zero. Organizado pelo Programa de Prevenção de Lesões e Violência do Departamento de Saúde e Higiene Mental da Cidade de Nova York, um grupo de trabalho que incluiu diferentes departamentos da cidade identificou quesitos diversos a serem pesquisados e situações em que as colisões possam não ser classificadas como acidentes, mas como eventos que poderiam ser evitados. A iniciativa fez a cidade identificar as prioridades de pesquisas e análises para os planos de Visão Zero e articular a área da saúde nesse trabalho.

(Foto: Mariana Gil/WRI Brasil Cidades Sustentáveis)
Brasil longe da meta estabelecida pela ONU
De acordo com dados divulgados pelas Nações Unidas, cerca de 1,25 milhão de pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito e entre 30 e 50 milhões ficam feridas. Os países de baixa ou média renda acumulam 90% das mortes no trânsito, enquanto somam 54% dos veículos no mundo. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) relata que o Brasil é o país da América do Sul com a maior taxa de mortalidade no trânsito. O Brasil se comprometeu a cumprir a meta da Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2011-2020, na qual deve cortar pela metade a projeção de mortes até 2020. Porém, a três anos do prazo, estamos longe disso.
O Brasil registra 23,4 mortes a cada 100 mil habitantes. Em agosto de 2016, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, afirmou que o impacto financeiro dos acidentes de trânsito é de R$ 2,3 bilhões e, em média, cada acidente teve um custo de R$ 72 mil no Brasil. O Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT), é uma das grandes fontes e recursos do Sistema Único de Saúde (SUS). Do total arrecadado, 45% são destinados ao Fundo Nacional de Saúde.
“Em todo o mundo, os programas de Visão Zero mais bem sucedidos são aqueles que envolvem um maior número de setores com visões complementares, e não estão restritos ao setor de transportes”, salienta Marta Obelheiro, coordenadora de Segurança Viária do WRI Brasil Cidades Sustentáveis. “No Brasil, a saúde pública é um dos setores mais afetados pelos acidentes de trânsito, com grande parte do orçamento destinado ao tratamento de vítimas de acidentes. São leitos hospitalares que estão lotados de acidentados, e poderiam estar sendo utilizados para o tratamento de doenças. São recursos preciosos que poderiam ter uma melhor destinação. Além da tradicional contribuição com o compartilhamento dos dados relacionados a acidentes e vítimas, o setor de saúde pública tem muito a contribuir com o planejamento e implementação de políticas de Visão Zero”, completa Marta.
O Brasil tem a necessidade urgente de reduzir suas vítimas de trânsito. O esforço de construir melhores vias urbanas, reduzir os limites de velocidade, realizar estudos mais aprofundados sobre as causas dos acidentes e o trabalho em conjunto, por exemplo, entre o Ministério dos Transportes e o Ministério de Saúde, poderiam colocar o país mais próximo do número zero de mortes nas ruas e estradas.