Por Eveline Trevisan, Guilherme Tampieri e Marcelo Cintra
O relato da nossa jornada de aventuras e possibilidades começou e está acabando na companhia de Ítalo Calvino que, em seu fascinante livro Cidades Invisíveis, nos mostra inúmeras cidades possíveis relatadas por Marco Polo ao imperador Kubai Klan. Em certo momento, o imperador questiona que o navegador jamais cita sua cidade natal, ao que é contestado: “Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.” E completa: “Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.”
No nosso caso, trata-se de Belo Horizonte.
Depois dos textos que produzimos sobre as cidades de Bremen, Berlim e Paris, que foram visitadas e pedaladas por nós em uma viagem realizada em abril de 2015, motivada pelo projeto SOLUTIONS – Sharing Opportunities for Low carbon Urban transporTatION (Compartilhando Oportunidade de Transporte de Baixo carbono), queremos falar da nossa cidade, onde atuamos, entre outras coisas, na construção da política municipal para bicicletas.
Apesar de terem existido ações pontuais para a bicicleta na cidade (como implantação de trechos de ciclovias) anteriormente, apenas em 2006, a cidade passou a ter um Programa de Incentivo ao Uso da Bicicleta, denominado Pedala BH (clique para ver o texto da primeira versão do programa). Com diagnóstico e propostas relativamente abrangentes (rede cicloviária, bicicletário e paraciclos, agente de trânsito na bicicleta, campanhas educativas) o que foi marcante nesse momento foi a proposição de estratégias que contemplavam eventos, busca de recursos de financiamento e monitoramento. Entre 2008 e 2010, o Pedala BH foi incorporado ao Plano de Mobilidade Urbana de Belo Horizonte – PlanMob-BH que validou e complementou a rede cicloviária e trouxe novas e mais abrangentes ações (clique aqui para ver um resumo das propostas de bicicleta no PlanMob-BH).
Até então, nós três atuávamos em paralelo tendo a bicicleta como apenas mais um dos temas de trabalho, pois nem Eveline havia se transformado na Coordenadora do Pedala BH, nem Guilherme havia participado da criação da BH em Ciclo – Associação dos Ciclistas Urbanos de Belo Horizonte e nem Marcelo tinha a bicicleta como prioridade nas ações de mobilidade urbana que participava. Mas cada um de nós já estava convencido da importância da bicicleta como “efeito pedalada” para transformar as cidades, como brilhantemente escreveu o antropólogo francês Marc Augé. Essa expressão veio substituir o “efeito borboleta” que apontava a correlação entre fatos no mundo globalizado, e parte da constatação de como exemplos de cidades europeias que se transformaram através da bicicleta tem inspirado outras cidades mundo afora… Augé vai no âmago de nossas percepções, constatando que o milagre da bicicleta é sua persuasão suave e imagina um futuro onde se pedala em Marte, onde se questiona se a bicicleta não teria o potencial de se transformar na terceira via, em um sistema ainda capitalista (que se beneficia com a bicicleta), mas que “se preocupa antes de tudo com a felicidade dos indivíduos”.
Ilustração Dream Bike Delivery, série de pinturas de Jessica Findley, parte da matéria na Revista Pise a Grama 07 – Passeio.
Exagero de Augé? Pode ser, mas Jeff Mapes, em Pedaling Revolution, constata como os ciclistas estão mudando as cidades americanas, criando uma nova cultura de bicicleta urbana em Portland, Nova York, Chicago e São Francisco. Aí chegamos no ponto da mudança: as (os) ciclistas!
Foi em dezembro de 2012 que entendemos que o cenário da bicicleta em Belo Horizonte ia começar a mudar de forma mais impactante, através da criação do Grupo de Trabalho Pedala BH, ou simplesmente, GT Pedala BH. Dele, participamos ativamente da criação e fomos à maioria de suas reuniões mensais nesses últimos três anos. Do encontro da reivindicação dos ciclistas por melhores ciclovias com a abertura do órgão gestor à essa participação, o que mais tem alimentado o GT Pedala BH é a nossa (e de tantos outros que participam das reuniões) vontade pessoal de construirmos algo juntos.
Quando Kublai Khan pergunta a Marco Polo se ele viaja para reviver o passado ou reencontrar o futuro, ele responde: os outros lugares são espelhos em negativo, pois “o viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e não terá”. Nessas nossas viagens, não apenas a Bremen, a Berlim e a Paris, pudemos ver o muito que nos falta e que ainda não temos, entre outros:
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os incríveis 25% de viagens em Bremen realizadas por bicicleta contra 0,4% por aqui;
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a rapidez em gerar as mudanças através de uma determinação política que produziram 670 km de ciclovias em Berlim contra 87 km em BH;
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a incipiente qualidade dos projetos (principalmente de interseções) e das implantações das nossas estruturas;
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um sistema de bicicleta compartilhada como o Velib, que realmente cumpra sua função na cidade (6,36 viagens por bicicletas de Paris contra apenas 1,83 viagens em BH).
Imagem parcial do trabalho comparativo entre Velib e Bike BH, apresentado por Guilherme Tampieri no Velocity 2015.
Porém, essas viagens também nos “revelaram” que o GT Pedala BH é “o pouco que é nosso”, pois não encontramos a mesma potência que vemos no GT Pedala BH em nenhum dos diversos espaços de diálogo que as cidades europeias e brasileiras estão criando.
Pode ser pretensão nossa, mas acreditamos que não! Esse espaço livre para debates e participação tem alavancado ideias e ações, com muitos bons momentos compartilhados entre os diversos e múltiplos atores que se envolvem e se engajam nos processos, como está sendo o caso do Projeto de Zona 30 e de Ciclorrua desdobrado da parceria com Bremen. Parte de nossa viagem a Bremen foi para visitas técnicas sobre essas estruturas e que está sendo proposta para a região da Savassi. Em 2015, no GT Pedala BH, iniciou-se o processo de discussão para viabilização da implantação, em Belo Horizonte, de uma rua compartilhada prioritária para as bicicletas (ciclorrua) inspirada em um exemplo de sucesso da cidade de Bremen.
Convite divulgado amplamente nas redes sociais para as reuniões do GT Pedala BH.
Foto da Reunião do GT Pedala BH de dezembro de 2015.
A implantação da Zona 30 (velocidade máxima 30km/h) é um projeto que, além da redução de velocidade nas vias com implantação de sinalização viária, propõe alteração do desenho urbano nas interseções e em alguns quarteirões para que o novo “desenho” da via colabore com a redução da velocidade. Inclui a instalação de mobiliários urbanos que contribuam para a ambientação local, estimulando a apropriação de espaços públicos. Esses mobiliários urbanos deverão ser desenvolvidos em parceria com a população (ciclistas, moradores da região e estudantes).
Imagens do Projeto de Zona 30 km/h e Ciclorrua a serem implantados em Belo Horizonte.
Por fim, cabe destacar que, como nós, muitas outras pessoas já viajaram e vivenciaram o “efeito pedalada” em cidades como Amsterdam e Copenhague ou mesmo em algumas cidades brasileiras, como São Paulo, e estão por aqui, acreditando na possibilidade de que tenhamos a nossa “revolução mineira do pedal”. Para nós três, olhar e pedalar nos “espelhos negativos” de Bremen, de Berlim e de Paris foi um motivador para escrevermos juntos esses relatos, para enxergamos o pouco que temos e o muito que nos falta, mas acima de tudo, para continuar acreditando que essa é uma bandeira que vale a pena.
Viagens são inspirações que constroem e desconstroem mitos. Vamos viajar mais por BH, de bicicleta!
* A viagem a Bremen dos representantes da BHTRANS (Eveline Trevisan e Marcelo Cintra) foi paga pelo Projeto SOLUTIONS, com verba da Comunidade Europeia. Os dias em Berlim e Paris, bem como a totalidade da viagem de Guilherme Tampieri foram totalmente cobertos com recursos próprios dos viajantes.