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Fernando Haddad: a cidade é o produto de uma ação coletiva

Planejamento e gestão fundiária são instrumentos para tonar as cidades mais igualitárias e capazes de acolher todos os cidadãos, independentemente da renda

(Foto: Priscila Pacheco/WRI Brasil Cidades Sustentáveis)

Na última semana, Fernando Haddad participou do Fórum Vida Urbana, em Belo Horizonte. O prefeito de São Paulo compôs a mesa no painel “Planos Diretores Municipais: leis para uma nova agenda urbana”, ao lado de Marcio Lacerda, prefeito de Belo Horizonte; Carlos Amastha, prefeito de Palmas; e Elkin Velásquez, da ONU Habitat, que moderou a sessão. O prefeito que vem mudando a cara da maior cidade da América Latina falou sobre o novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo e como este busca qualificar a cidade por meio de mudanças estruturais – “Queremos fazer as mudanças necessárias para que a cidade proporcione mais qualidade de vida para todos. Priorizar o transporte coletivo e qualificar os deslocamentos de pedestres e ciclistas é só o começo – a mudança deve ser ampla”, atestou. Por cerca de 20 minutos, Haddad dividiu com um auditório lotado um pouco de sua visão sobre planejamento urbano e gestão fundiária – ferramentas essenciais quando se fala em construir cidades mais sustentáveis. “Vivemos um ótimo momento para debater as cidades, me sinto muito otimista com as discussões que tenho visto no Brasil. O debate que tivemos hoje é mais um passo e certamente vai contribuir para levar adiante a luta por cidades mais harmoniosas, melhores para as pessoas”, finalizou. Abaixo, você confere na íntegra as considerações do prefeito.

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Administrar as cidades e planejá-las a longo prazo é, antes de mais nada, uma discussão de acesso à terra. Se não partirmos da premissa de que o acesso à terra é um fator chave para compreender as cidades, teremos muitas dificuldades em corrigir o desequilíbrio que o mercado produz nelas. O mercado produz cidades. A especulação civil e a especulação imobiliária produzem cidades. O desafio do planejamento urbano é corrigir distorções que o livre mercado geraria não fosse o contraponto de leis urbanísticas que regulam o acesso e o uso do solo. A renda da terra é uma variável fundamental, e a regulação do acesso é a chave para permitir que a cidade funcione bem. Podemos dizer que uma cidade funciona bem se ela consegue acolher a totalidade de seus cidadãos, independentemente da renda. E uma coisa depende da outra: o acesso à terra depende do valor da terra, e a renda das pessoas é a chave que abre ou não oportunidades para aqueles que escolhem morar nas cidades.

Nesse contexto, é fundamental atentar para uma questão. No Brasil, estamos correndo atrás de um prejuízo gerado pelo processo não-planejado de urbanização. Os empreendimentos imobiliários, em tese, são sempre bem-vindos. Em tese. Moradia, escritórios, lojas de rua, cinema de rua, mesmo shoppings – tudo isso, se for bem planejado, interessa à cidade discutir, porque o investimento imobiliário é parte do dia a dia nos centros urbanos. Mas, se isso é verdade – que todo empreendimento tem uma externalidade positiva – é imperioso reconhecer que também há externalidades negativas. Não existe nenhum empreendimento que seja neutro na cidade – geram impacto no trânsito, no valor da terra, entre outros fatores que de alguma forma precisam ser mitigados pelo poder público.

Uma das formulações mais interessantes dos últimos anos – das últimas décadas, eu diria – é que, de alguma maneira, o município tem que se apropriar do que se convenciona chamar de mais-valia fundiária. Precisamos nos apropriar disso, porque, se é verdade que a terra tem um valor, esse valor é diretamente proporcional à infraestrutura urbana que foi produto do esforço da coletividade. E, se o valor da terra é produto de um esforço social coletivo, a valorização da terra, o mais-valer fundiário, tem que ser apropriada pela coletividade que empreendeu a cidade. Isso porque a cidade não é produto de um empreendimento nem de um empresário: ela é produto de uma ação coletiva que, em geral, se desenvolveu ao longo de séculos.

Então, por que se apropriar de uma parte dessa mais-valia? Em primeiro lugar, porque é uma maneira de reembolsar a cidade por um investimento que ela já fez. Em segundo lugar, porque a cidade vai precisar de novos recursos para devolver qualidade de vida e mitigar as externalidades negativas dos empreendimentos imobiliários que ainda estão ocorrendo. Uma das medidas que tomamos em São Paulo foi definir o coeficiente de aproveitamento básico dos terrenos para 1. O proprietário tem o direito de construir uma vez. Se quiser edificar para além desse direito que lhe foi concedido, tem de pagar o que chamamos de outorga onerosa, que vai constituir o fundo de organização da cidade. Em suma, há regiões da cidade em que só é possível construir uma vez, há regiões em que se pode construir duas, e outras em que é possível construir até quatro vezes a área do terreno. Para além de uma vez, é preciso comprar o direito de construir.

De qualquer forma, isso tem de ser pactuado; não adianta fixar um preço de outorga que expulse os empreendedores da cidade. É preciso encontrar o equilíbrio. Para a parte mais madura do empresariado, essa outorga é vista como um bom sinal; sabe-se que aquele fundo vai retornar para a cidade em termos de melhorias e alavancar novos empreendimentos. Isso cria uma dinâmica positiva: os empreendimentos privados servem-se do investimento público que mitiga os efeitos negativos dos empreendimentos privados. Estes, por sua vez, criam condições para que novos empreendimentos aconteçam. Sempre buscando o equilíbrio entre investimento público e privado no sentido de gerar bem-estar e uma cidade para as pessoas. O empresariado moderno – e falo porque tive de negociar os termos desse acordo na Câmara Municipal – compreendeu que é importante ter um fundo de urbanização criado a partir da mais-valia fundiária.

 

Distribuição da infraestrutura

Esse foi o primeiro ponto.  Ponto dois: onde adensar? São Paulo viveu – ainda vive – um desequilíbrio enorme na hora construir. Como se houvesse uma espécie de transporte-fobia na cidade, com os empreendedores construindo o mais longe possível do metrô. O metrô estava indo para um lado, e os empreendimentos imobiliários para outro. Como se pudesse haver sustentabilidade em um projeto que não combina adensamento com infraestrutura. Nós recombinamos isso.

As cidades compactas, densas, são uma tendência natural. Uma tendência, inclusive, que muitos defendem no país. Depende, no entanto, de onde vai acontecer esse adensamento. Em São Paulo, decidimos preservar alguns bairros, sobretudo o miolo dos bairros. Diminuindo o potencial construtivo do miolo dos bairros, gerando áreas mais harmoniosas em que o adensamento é menor, onde as pessoas podem usufruir mais dos espaços coletivos. E permitimos, em compensação, um adensamento maior nas proximidades dos BRTs, do metrô, do monotrilho e da CTPM. Onde há transporte de alta capacidade, permitimos o adensamento. Garantindo que a quarta parte do terreno para cada unidade fosse suficientemente pequena para que as pessoas pudessem morar lá sem depender de uma vaga de estacionamento, justamente pela proximidade do transporte público na frente de suas casas.

Espaço viário: priorização de pedestres e do transporte coletivo (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil Cidades Sustentáveis)

Valorização e gentrificação

Terceiro ponto. Tudo o que é feito na cidade encarece a terra. A impressão é de que é melhor não fazer nada, ou você pode acabar expulsando a população mais pobre. Alguns chegam a ter medo do investimento. Assim como tem gente com medo do transporte público, tem pessoas que sentem medo do investimento privado, porque acreditam que o investimento privado, com razão, vai encarecer a terra. E, com o encarecimento da terra, vem um processo de gentrificação quase inevitável. Como se corrige isso? Reservando terra nas áreas que nós chamamos de Zonas Especiais de Interesse Social, as ZEIS.

Sem terra para a população de baixa renda, há gentrificação, não tem como evitar. O resultado dos investimentos é que a população de baixa renda é expulsa para áreas cada vez mais distantes. Hoje, considerando nossa mancha urbana para além da capital, a metrópole tem 22 milhões de habitantes – e obviamente a maior parte deles são pessoas pobres. Os pobres vão sendo expulsos gradativamente da capital, e isso gera, como reação (por vezes de momento), a ocupação de terrenos ociosos nas regiões centrais, formando as favelas. São muitos processos de ocupação irregular de terrenos que estavam servindo a especulação imobiliária, esperando o momento de ir ao mercado. Essas áreas são ocupadas e não tem quem tire o povo de lá. Porque o povo não quer morar a dezenas de quilômetros de onde estabelece o sustento da família. Por isso a demarcação das áreas especiais de inclusão foi fundamental. Em São Paulo, nós dobramos as ZEIS em relação ao Plano Diretor. Do mesmo jeito que negociamos a outorga com os empresários, negociamos as ZEIS com o movimento de moradia, buscando o equilíbrio.

Eu disse a vocês que criamos um fundo de urbanização a partir da outorga onerosa. Pois bem: não bastava fazer isso, porque o fundo de urbanização pode ser usado para construir túneis, viadutos ou outras obras. Foi preciso definir: 30% dele obrigatoriamente deve ser investido em transporte público e outros 30% em habitação de interesse social, justamente para mitigar os efeitos da gentrificação. Usa-se a mais-valia apropriada dos empreendimentos para a classe média, classe alta, e converte-se isso num fundo que vai mitigar os efeitos gentrificadores do processo de produção da cidade, fazendo com que a população de baixa renda encontre o seu espaço e consiga conviver de forma mais harmoniosa, em áreas dotadas de infraestrutura e equipamentos públicos para sua fruição.

Auditório lotado no Fórum Vida Urbana, em Belo Horizonte (Foto: Priscila Pacheco/WRI Brasil Cidades Sustentáveis)

 

Planos Diretores: ferramentas para produzir cidades melhores

Resumindo, os planos diretores das cidades têm que entender as forças de mercado que vão atuar em uma direção, normalemente em benefício do lucro privado. O que é justo, mas é preciso considerar essa mecânica de mercado e produzir normas que vão criar uma contratendência, a fim de criar uma cidade para todas as pessoas. Uma cidade que permita a todos nós encontrarmos espaços de convivência.

É óbvio que, ao falar em mobilidade, não se fala só de transporte. O Plano Diretor criou incentivos fiscais para empresas que quiserem se deslocar do centro para a periferia, no sentido de aproximar os moradores de seu posto de trabalho. Temos duas áreas incentivadas em São Paulo, uma no extremo leste e outra no extremo sul. As empresas que vão para lá não pagam IPTU e ITBI, justamente para tentar buscar uma harmonia que as nossas cidades, quase todas não planejadas, não conseguiram alcançar. Existem mecanismos: nós temos o Estatuto das Cidades, o Plano Nacional de Mobilidade Urbana, muitos instrumentos legais que permitem que as gestões municipais avancem numa agenda socioambiental vigorosa. Às vezes, o que falta é um ambiente político propício para discutir esses temas. As pessoas costumam rotular essas políticas, impedindo a discussão do que é mais importante.

Chegamos a este ponto. De ser mal compreendidos se o ambiente político não estiver desanuviando para o debate. O que eu entendo é que, graças a Deus, vivemos em uma sociedade democrática. Ninguém impõe o Plano Diretor. E um Plano Diretor que satisfaça alguém 100% tem alguma coisa errada. Porque planos diretores são fruto de uma correlação de forças que será tão mais avançada quanto mais democraticamente esses planos forem debatidos. No nosso caso, foram 64 audiências públicas no âmbito do executivo e 64 no âmbito do legislativo para construir os votos necessários para aprovar o plano. Aprovamos com 44 dos 55 votos possíveis. Essa construção se deu na esfera democrática, no embate público, mas sem desrespeito. Participaram desde os mais pobres até os mais ricos. Sentaram-se na mesma mesa, cada um apresentando seus interesses, legítimos, de forma transparente. Todas as emendas sugeridas foram disponibilizadas na internet, para que pudessem ser conhecidas com antecedência em relação à votação. Em se tratando do Plano Diretor, outra questão que não pode ser esquecida é o trabalho formal. Como encaminhar a discussão para legitimar um texto em que todos se reconheçam? É preciso radicalizar a democracia e escancarar de forma transparente os interesses. Conteúdo e forma têm de estar unidos nesse momento. Nós temos instrumentos para avançar muito as nossas cidades, que não foram planejadas com a devida cautela em decorrência de um processo de urbanização muito rápido e talvez até mesmo fora do contexto de qualquer planejamento.

Essas são as minhas considerações. É sempre gratificante estar em um debate, no Brasil, sobre cidades. O Brasil tem algumas experiências exitosas de gestão urbana que serviram até exemplo no exterior para outras cidades, e hoje demos contribuições importantes. Vivemos um ótimo momento para fazer a agenda urbana avançar.

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