
Mesmo diante de um futuro ainda incerto, as cidades precisam começar a debater e se preparar para as transformações no transporte que se avizinham (foto: Catia D’Amore/Flickr)
Carros autônomos, elétricos, compartilhados? Transporte individual, sob demanda, coletivo? O transporte urbano vive um momento de constantes transformações. Nesta série, originalmente publicada na Revista NTU Urbano, Luis Antonio Lindau, diretor do programa de Cidades do WRI Brasil, reflete sobre o impacto dessa revolução nas cidades.
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O ano de 2016 ficará na história não apenas pelas reviravoltas políticas no mundo, mas pelo início de uma revolução na mobilidade urbana. Praticamente todos os fabricantes de veículos anunciaram fusões com empresas de tecnologia, buscando protagonismo no mercado de sistemas autônomos, compartilhados e elétricos. Pode até ser que no Brasil demore mais, mas a mudança de paradigma que se alinha no horizonte transformará o transporte mais uma vez. Portanto, nada como revisitar a história e ver o que ela pode nos ensinar.
Nossa breve viagem no tempo se inicia na Londres do século 16, quando mais de 40 mil watermen, os remadores regulados pelo Parlamento, detinham a exclusividade da travessia de pedestres no Rio Tâmisa.

Reprodução de um manuscrito escocês do século 17 mostra a ponte de Londres e os waterman fazendo a travessia (imagem: domínio público)
O serviço estava consolidado até surgir a proposta de construir a segunda ponte, já no século 18. Essa novidade foi fortemente apoiada pelos operadores de cabs, pequena cabine preta e retangular puxada por um cavalo e precursora dos atuais taxis londrinos, até então sujeitos à histórica e saturada Ponte de Londres. A nova ligação entre as duas metades da cidade marcou o início do fim para os watermen.
No início do século 19, surgem os primeiros omnibus (do latim “para todos”), puxados por mais de um cavalo e capazes de transportar diversas pessoas. O conceito importado de Paris despertou forte resistência dos operadores de cabs, é claro, mas vingou.
Então veio a Revolução Industrial, e com ela o aço, que fomentou o transporte coletivo ao fornecer trilhos para os bondes, tornando mais eficiente o esforço trator dos cavalos. A novidade não agradou a elite londrina e os parlamentares, acostumados a circular nos rápidos veículos privados puxados a cavalo e que tinham agora um obstáculo ao seu conforto. A solução foi a invenção do trilho engastado, utilizado até hoje nos bondes de muitas cidades.
Outra inovação responsável por uma ruptura também chegou com a Revolução Industrial: a energia a vapor. Primeiro, foram os veículos automotores, tão à frente da realidade da Londres de 1865 que uma lei parlamentar exigia alguém caminhando com uma bandeira para anunciar a sua presença. Mas a metamorfose profunda na configuração das cidades ocorreu mesmo com os trens a vapor. Da possibilidade de longos deslocamentos diários em velocidades elevadas nasce também a vida suburbana. Gente que optou por morar longe das áreas centrais, de ar poluído pela queima do carvão industrial e infestações de doenças endêmicas e epidêmicas decorrentes da falta de saneamento.

Cartoon de 1831 satiriza os futuros problemas com o transporte na cidade após a chegada da energia a vapor (imagem: domínio público)
Mas Nikolaus Otto e o motor a combustão interna e Henry Ford com a produção em série mais uma vez quebrariam o paradigma. Pena que não temos a chance de voltar no tempo e mostrar aos planejadores urbanos do pós-guerra os efeitos de longo prazo decorrentes do crescimento exponencial da indústria automobilística. Já temos pelo menos meio século de cidades dedicando prioridade de circulação quase absoluta aos automóveis em detrimento das pessoas.

Tráfego normal em uma rua de Los Angeles, nos Estados Unidos (foto: Coolcaesar/Wikimedia Commons)
O que aconteceu com os watermen no período pós-ponte? Os que tinham real vocação para o transporte urbano devem ter se tornado operadores de cabs. O Rei George III, ao mesmo tempo em que via os impostos gerados pelos watermen minguarem, buscou compensação arrecadatória nos cabs.
A história mostra que, invariavelmente, a inovação precede a regulação. E no mundo dos negócios em transformação, sobrevivem os mais resilientes. Como a mobilidade autônoma, elétrica e compartilhada que se avizinha irá impactar o transporte coletivo? Esse é o assunto que abordarei no próximo artigo.
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