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Mobilidade em 1 Instante: o alarme e o resmungo incontrolável

(Foto: Sergio Trentini)

 

Era um carro com quatro portas e, provavelmente, ar-condicionado e direção hidráulica. O que preenche o atual conceito básico de carro. E que fique claro que o meu conhecimento sobre carros básicos contemporâneos é proveniente das páginas inteiras de anúncios que as montadoras colocam nos jornais que costumo ler aos finais de semana. Além disso, entendo que são abastecidos com combustíveis fósseis e que são caros – proporcionalmente falando, tanto quanto os veículos em si. Mas essa análise prosaica que estabeleço é irrelevante em seus detalhes, pois ele, o carro, não é meu.

Apenas seu alarme me diz respeito. O maldito barulho do alarme que me faz emitir o pior dos sons: o resmungo incontrolável. Agora, exatamente agora, ele está tocando há duas horas e quarenta e três minutos e seis, sete, oito segundos.

Levantei da cama e coloquei uma camiseta para acompanhar o calção que costumo dormir. Estava disposto a parar o fluxo de pensamentos que aquela sirene de semitons agudos causava. Ela subia pelo espaço que deveria ser preenchido pelo silêncio da madrugada e entrava por baixo da janela do quarto, no segundo andar do prédio. Isso por volta de meia-noite e vinte: quando eu estava há uma hora ouvindo aquele som distante que, após a janela, entrava por meus ouvidos e percorria um curto caminho até uma área esquisita do meu cérebro. Um neurocirurgião poderia abrir minha cabeça e vasculhar até descobrir a particularidade de uma adjacência cerebral da ira com a autocomiseração. E essa intersecção pode ser atingida por pequenos incômodos inesperados como o alarme de um carro estacionado em frente ao meu prédio. Sou sensato, sei como essa tangente sempre existiu. Já estava tudo ali. Posso culpar o alarme apenas por despertar tal área que prefiro manter no subterrâneo neural.

Deveriam dar mais ênfase à duração das baterias, penso enquanto sento na lataria do capô meio arredondado do veículo. Talvez assim, de perto, ouvindo em toda a potencialidade o maldito som estridente, meu cérebro se esvaziasse de pensamentos autodestrutivos. A dor nos tímpanos não poderia curar meus maiores males psicológicos, mas distração é a cura do século, dizem. O som daquele veículo desconhecido me atordoava e eu murmurava que iria esquecer do empréstimo que fiz para comprar um carro para não me atrasar para o trabalho e mesmo assim continuar me atrasando até o dia que me demitiram e precisei vender o carro, mas continuar pagando o empréstimo.

Vou esquecer do empréstimo que fiz para comprar um carro…

Vou esquecer… Aí ela surgiu. E ela deve ter me visto com a face crispada e os punhos cerrados com força suficiente para deixar minhas articulações dos dedos saltadas. Ou pode apenas ter sentido o cheiro de raiva no ar. Imediatamente ela me fez esquecer do alarme e da raiva, e da dor nos tímpanos. Esqueci imediatamente do mantra que murmurava. Não identifiquei de qual prédio ela havia saído, mas as chaves de alguma grade ainda balançavam em suas mãos. Tilintavam tímidas, abafadas pelo alarme.

Sou um cara sensato. Gosto de pensar assim, apesar dos problemas e dos resmungos incontroláveis. Portanto, adiantei meu pensamento e me afastei do carro ao mesmo tempo que ela se aproximava. Ergui as mãos com as palmas viradas na sua direção numa tentativa babaca de mostrar que eu não estava tentando roubar aquele carro. Que eu só estava sentado pensando sobre meus próprios problemas.

Identifiquei a inutilidade da minha reação assim que ela levantou a chave do carro em frente ao meu nariz e perguntou se eu estava tentando roubar o veículo.

O carro é teu?, perguntei e abaixei a palma da mão direita para apontar na direção do farol que jogava uma luz laranja na cara dela. Não sei por quê, mas a palma da minha mão esquerda continuava no ar apresentando uma semidefesa. Talvez por precaução, pois uma pessoa raivosa reconhece imediatamente uma semelhante. Poderia mentir que percebi a raiva através da atmosfera pesada, ou por sua postura corporal, mas preciso desabafar a estupidez que o fato de ela ter um veículo me fez julgá-la como uma humana raivosa em potencial.

Eu poderia estar errado. E gostaria muito de estar, pois não estaria com os rasgões que ela me deixou nas bochechas e o estomago retorcido por três ou quatro socos. Além dos cortes meio irregulares nos antebraços, porque quando tentei reagir e levantar os braços, ela usou a chave do veículo como se fosse uma faca e desferiu inúmeros golpes. Foi lindo. Isso tudo ao som do alarme.

Depois que eu caí sentado no asfalto, ela se deu por satisfeita. Virou as costas e apontou um objeto retangular em direção ao veículo para, só então, apertar o botão que cessou o som do alarme.

Máquinas de ar-condicionado presas embaixo das janelas dos apartamentos, buzinas distantes de uns poucos carros nas ruas paralelas e dois cachorros latindo desesperados assumiram a responsabilidade de fazer a segunda voz do silêncio aconchegante daquela madrugada de terça-feira.

De vez em quando o alarme do carro ainda toca só em meus ouvidos. E os resmungos incontroláveis se tornaram recorrentes, mas, depois de um tempo, acabamos por nos acostumar uns com os outros; o alarme, os resmungos e eu.

***

A série Mobilidade em 1 Instante, do TheCityFixBrasil, é movida pela fotografia. Trazemos imagens que nos inspiram e que permitem uma reflexão sobre a mobilidade e a vida nas cidades. Se você quiser participar, com um texto ou uma fotografia, será muito bem-vindo a bordo! Escreva para nós: contato@embarqbrasil.org

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