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Por que Paris não é uma Amsterdã?

(Foto: Carlos Felipe Pardo/Flickr)

Texto escrito por Eveline Trevisan, Guilherme Tampieri e Marcelo Cintra.

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Em Bremen, cerca de 25% da população utiliza a bicicleta diariamente como meio de transporte. Em Berlim, esse número cai para 13%, mas ainda permanece bastante acima média europeia (8%). Em Paris, nossa terceira cidade, o percentual de pessoas que fazem uso da bicicleta em seus deslocamentos diários gira entorno de 3%, valor igual à média francesa. Vivendo essas três realidades em um período curto de tempo, foi possível notar as diferenças e ver que elas, para bem ou mal, saltam aos olhos.

Mesmo com essa diferença de números, é possível e agradável pedalar em Paris. A capital tem como “vedete” o sistema Vélib’, as bicicletas compartilhadas implantadas na gestão do prefeito socialista Bertrand Delanoë e que se tornaram sucesso mundial. Foi em também em sua gestão, que durou 14 anos, que começou a história recente de melhoria das condições para pedalar na cidade, com o primeiro Plano Diretor Cicloviário (elaborado para o período de 2002 a 2010). A implantação das ações desse plano contemplou, além do Vélib, ruas compartilhadas e uma extensa rede de ciclovias.

Peças da exposição “I Vélib’ I can Fly”, em cartaz durante nossa visita à cidade.

Como outras tantas cidades europeias, Paris tem limitado a velocidade dos automóveis para promover a caminhada, o uso da bicicleta e de outras alternativas como o patinete e o skate. São as ruas compartilhadas: Zonas 30, Zonas de “Encontro” (Zones de Rencontre, onde a velocidade máxima é de 20 km/h) e as Vias para Pedestres. Essas áreas calmas estão presentes em aproximadamente um terço da capital francesa e são decorrência de uma política nacional de 2008, o Código da Rua (Code de la rue, Decreto n° 2008-754 de 30/07/2008), que complementa o Código de Trânsito (Code de la route, em francês), criando condições especiais para as vias urbanas.

Além dessas ruas com baixas velocidades, que são seguras para pedalar, a cidade conta com mais de 700 km de pistas cicláveis (vias exclusivas ou compartilhadas com ônibus e, em menor escala, táxis). Salta aos olhos a diversidade dessa estrutura, que possui ciclovias e ciclofaixas na rua e na calçada, vias compartilhadas com ônibus e a permissão para pedalar no contrafluxo (medida denominada Bike Sauf, ou proibido aos veículos, com exceção para a bicicleta). Essa rede municipal é complementada por uma impressionante rede ciclável, na região metropolitana de Paris, com mais de 3.500 km.

Mapa das pistas cicláveis de Paris, disponível em papel e para download.

Zona de Rencontre.

Ciclovia compartilhada com ônibus.

A infraestrutura de Paris não perde muito para a de Bremen e de Berlim, mas, ainda assim, menos pessoas pedalam na capital francesa em comparação com as cidades alemãs. Existem razões históricas que envolvem legislação, economia e a própria cultura da bicicleta para explicar essa diferença, mas optamos por mostrar uma do presente. Atualmente, em Paris, trajetos a pé e por transporte coletivo correspondem, juntos, a 88% das viagens! Os outros 12% estão divididos entre carro (7%), bicicleta (2,5%), moto (1,62%) e modos diversos. Ou seja, na Cidade Luz a matriz modal (divisão apresentada acima) é bem distribuída entre os modais mais democráticos: transporte coletivo e modais ativos ou não motorizados.

Ainda que Paris tenha mais gente caminhando e usando transporte coletivo em relação a suas vizinhas alemãs, que possuem índices de utilização de carro semelhantes aos do Brasil (30% a 40%), a cidade não está confortável com o índice de uso da bicicleta. Assim, a atual administração da Prefeita Anne Hidalgo, que deu continuidade às ações anteriores, desenvolveu um ousado plano de mobilidade urbana por bicicleta para aumentar em pelo menos cinco vezes o atual número de ciclistas em suas ruas1: o Plan Vélo.

 

O Plan Vélo e o que o sustenta

O Plano de Mobilidade Urbana por Bicicletas de Paris, o Plan Vélo 2015-2020, tem seis eixos básicos:

  1. Encorajar o uso da bicicleta, dobrar a quantidade de vias para ciclistas da cidade até 2020 (passar dos atuais 700 km para 1.400 km) e criar uma rede expressa para bicicletas;
  2. Reforçar o conforto e a segurança dos ciclistas através de estruturas adaptadas e da adoção de novas regras de circulação;
  3. Facilitar o estacionamento das bicicletas e a intermodalidade, criando mais de 10 mil novas vagas nas ruas e perto das estações de metrô;
  4. Criar uma cultura da bicicleta, apoiando a criação de novos espaços dedicados à bicicleta (centros de aprendizagem, oficinas e outros);
  5. Desenvolver ajudas para aquisição de bicicletas ou ciclomotores elétricos, triciclos ou bicicletas de carga;
  6. Dinamizar o cicloturismo, criando novos itinerários na região central da cidade que permitirão aos visitantes descobrirem a diversidade e a riqueza das ruas parisienses.

Para realizar tudo isso, a prefeitura de Paris triplicou o orçamento destinado a bicicletas e pretende investir cerca de 150 milhões de euros neste período da seguinte maneira:

  • 63 milhões de euros para construção de estruturas cicloviárias;
  • 40 milhões de euros serão dedicados a integrar projetos cicloviários a projetos de transporte coletivo e a ajustes nos grandes eixos viários;
  • 30 milhões para o programa “Paris a 30 km/h” e para aumentar as ruas com duplo sentido ciclável;
  • 10 milhões para subsidiar a população na compra de bicicletas; e
  • 7 milhões para aumentar a quantidade de estacionamentos para bicicletas pela cidade, sobretudo nas estações de metrô e trem (TGV – trem de grande velocidade, RER – rede expressa regional e TER – trem expresso regional).

 

E o movimento dos ciclistas

Conhecendo a história e o contexto das políticas públicas para bicicletas de Paris e com experiência de pedalar na cidade, os três belo-horizontinos foram se encontrar com atores locais que estão, como eles, promovendo o uso deste modo de transporte na capital francesa. O primeiro encontro foi com uma das diretoras da Associação MDB (Mieux se Déplacer à Bicyclette – Melhor se deslocar em bicicleta), uma das mais antigas da Europa, na Maison du Vélo (Casa da Bicicleta), um espaço cedido pela prefeitura e dividido por três associações locais que serve como referência para a promoção do uso da bicicleta na cidade.

Sede da Maison du Vélo em Paris (37, Boulevard Bourdon, 75004 Paris)

Num segundo encontro, conversamos com Isabelle Lesens, jornalista especialista no uso urbano da bicicleta, uma das fundadoras do MDB (antes de se chamar MDB) e uma das responsáveis por discutir a política de mobilidade urbana por bicicletas dentro da prefeitura de Paris (Isabelle escreve o blog Isabelle et le vélo).

Em ambos os encontros, ouvimos sobre as dificuldades da capital francesa e do próprio país em desenvolver o uso da bicicleta como meio de transporte de forma contínua, sobre as ações que vêm sendo feitas pelo governo e pela sociedade civil, sobre o Vélib’, o Plan Vélo, sobre o passado e os inúmeros futuros possíveis para o uso da bicicleta em Paris. Em uma cidade em que se investe muito mais em infraestrutura para bicicletas que na realidade brasileira, a impressão que temos é de uma certa “acomodação” da luta, motivada talvez pelo fato das bandeiras terem sido incorporadas nas propostas públicas. De certa forma, parece haver uma descrença de que a bicicleta consiga se impor mais na cidade, mesmo em se tratando de um país apaixonado pela bicicleta esportiva, onde o Tour de France é evidência.

 

A Europa é toda igual a Amsterdã?

Não! É importante ressaltar que as cidades da Europa como um todo tiveram um boom do uso da bicicleta nos anos que antecederam a 2ª Guerra por conta da crise. Entretanto, diferentemente do que se vê nos países do norte (Dinamarca, Holanda, Alemanha, Finlândia e Suécia), na França, Inglaterra, Itália, Portugal e Espanha, as cidades viram seus deslocamentos por bicicleta diminuírem até chegar números muito baixos (menos de 3%). O fenômeno se deu por várias razões, mas a principal delas foi a busca por um modelo que privilegiou o automóvel particular e marginalizou a bicicleta e o transporte coletivo.

Entretanto, desde o início dos anos 2000, de forma geral, esse quadro tem mudado no velho continente, muito por conta da pressão e atuação da sociedade civil. Para estimular essa mudança de paradigma e promover uma cultura que quer levar novamente as bicicletas às ruas, muitas são as ações, seja no governo, na sociedade civil ou conjuntas entre ambos. As ações dos últimos prefeitos de Paris, apesar de significativas para a bicicleta, não foram capazes de conquistar os ciclistas nem para pedalar e nem para acreditar na vélorution (jogo de palavras para revolução feita pelas bicis) urbana. O ceticismo com que o movimento ciclístico de Paris recebeu a ousadia do Plan Vélo é uma prova disso.

Em níveis diferentes, essas cidades enfrentam desafios comuns aos de Belo Horizonte: a predominância das estruturas para circulação dos carros, o excesso de automóveis, a falta de recursos ou de disponibilidade política para destiná-los a investimentos em mobilidade por bicicletas, entre outros tantos. Contudo, tanto em Belo Horizonte quanto nessas cidades europeias existem iniciativas que precisam ser reconhecidas como positivas para o desenvolvimento de um novo modelo de cidade, onde as pessoas em suas bicicletas são bem-vindas e podem circular em segurança.

Pedalar em Paris foi uma forma deliciosa que encontramos para percorrer mais lentamente a Cidade Luz, descobrindo recantos como a Buttes aux Cailles, onde charmosos bares nos receberam para uma despedida, deixando saudades da viagem. A relação entre Belo Horizonte, Bremen, Berlim e Paris será o objeto central do próximo e último texto desta série. Para ver os anteriores, clique nos links abaixo.

Vista da Rua da Buttes-aux-Cailles.

 

* A viagem a Bremen dos representantes da BHTRANS (Eveline Trevisan e Marcelo Cintra) foi paga pelo Projeto SOLUTIONS, com verba da Comunidade Europeia. Os deslocamentos e dias em Berlim e Paris, bem como a totalidade da viagem de Guilherme Tampieri, foram totalmente cobertos com recursos próprios dos viajantes. Saiba mais sobre o SOLUTIONS.


1Suas metas ousadas receberam críticas de algumas pessoas que trabalham e estudam o uso da bicicleta na cidade, que acreditam que o plano é incapaz ser realizado no tempo programado pela prefeitura.

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