Todo mundo já ouviu cidades sendo chamadas de “selvas de concreto”. O britânico Desmond Harris inclusive. Mas o renomado antropólogo não concordou com isso. Selvas não são como as cidades, pensou. Animais em selvas não estão em super população; esse problema é da vida urbana moderna, e um bem central. Se você quiser procurar por animais em ambientes lotados, continuou, você precisa buscar no zoológico. E aí ocorreu a ele: “a cidade não é uma selva de concreto – é um zoológico urbano”¹.
Os animais bípedes possuidores de telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor que no momento vivem no município de São Paulo com certeza seriam chamados por Harris de espécimes do zoológico paulista caso o estudioso desembarcasse na mais populosa cidade no hemisfério sul. Qualquer um que se desloque por nossa malha de transporte saturada admitiria o mesmo.
Se ele olhasse em volta, nas ruas, também poderia perceber duas coisas. A primeira é que toda essa população do zoológico caminha bastante. Na verdade, anda mais a pé do que de qualquer outro meio de transporte: deslocamentos com mais de 500 metros ou considerados “da origem ao destino” (de casa para o trabalho ou escola) correspondem a 30% ou 6,5 milhões de todas as viagens feitas na cidade, de acordo com uma pesquisa OD do Metrô, realizada em 2012².
A segunda coisa que perceberia é uma grande contradição entre esse fato e a condição deplorável de calçadas, os sinais feitos somente para motoristas e uma sensação geral de que necessitamos de rodas para chegar aonde queremos chegar, rápida e semi-inconscientemente.
Enfim, a pergunta que inevitavelmente faria: e o que as pessoas estão fazendo a respeito? Não teriam elas direitos que garantissem o bom andar?
O presente artigo destaca a contradição acima para explorar o movimento atual que luta por aumentar a conscientização e ação em relação à mobilidade a pé em São Paulo. Isso será feito em três partes: a partir de uma personagem central, das organizações civis a que faz parte, e da legislação a respeito.
Primeiro passo: andar e aprender
Assim como a maior parte de seus pares, Letícia Sabino também levou seus lá doze meses para aprender a andar. Mas sendo moradora de Santo André, preferia se deslocar de carro todos os dias para estudar Administração na faculdade, “encapsulada”. Foi só quando fez um intercâmbio para a Cidade do México que entendeu o que significava caminhar numa metrópole. Gigante como São Paulo, a capital mexicana também foi construída em função do carro. Porém, como não possuía um automóvel, teve que se virar de transporte público e, mais importante, descobriu o encanto da vida de pedestre³.
“Eu me apaixonei pela cidade”, ela conta. Adorou a cultura local, as construções, os comércios, e entendeu que isso era resultado da forma como ela se locomovia. “Eu percebi que isso determinou a maneira como eu me sentia na cidade, a forma como eu vivia. Voltando para São Paulo eu decidi que queria viver da mesma forma: caminhando o máximo que eu pudesse. Eu queria ter esta sensação, este bem-estar todos os dias. Deixei então de usar o carro e passei a usar somente transporte público e a caminhar, principalmente caminhar”.
Por que algo tão banal quanto caminhar é importante para o cidadão? Letícia explica que “é quando você toma contato com a cidade, com as pessoas, não só pela velocidade, que é muito menor do que se você estivesse de carro, como pela proximidade com as coisas à sua volta”. Além disso, esse deslocamento com qualidade, de forma proveitosa e completa, também é pensado para o bem coletivo, retomando desde questões de poluição até de convivência nas cidades.
Seus estudos e vontades se uniram para a fundação do Sampapé!, um coletivo criado para “para ajudar as pessoas a enxergar sua cidade de outra maneira, experimentando e interagindo com ela ao caminhar, à medida que vai descobrindo seus caminhos e segredos”.
O primeiro passo era, segundo ela, mostrar às pessoas que a forma normalmente apressada e utilitarista de caminhar pode ofuscar toda uma experimentação da cidade a partir dos próprios pés. A cultura, a história, as pequenas descobertas da esquina se abrem somente para quem para e resolve olhar à volta. As caminhadas por certos bairros com um trajeto recheado de curiosidades aguçam a percepção do cidadão e caminhante.
A conscientização logo deu lugar à reivindicação por melhorias nas calçadas, na iluminação pública e nas travessias a partir da corrente por uma melhor andabilidade (ou walkability, em inglês). “Começar a participar da vida pública, buscar interferir no desenho da cidade”, resume Letícia.
Por isso o Sampapé! organiza, além dos passeios culturais, o espaço online Desembucha!, para denunciar problemas nas calçadas; o Experimenta SP!, ocupações de praças públicas com atividades culturais; e o Anjos da Calçada!, que lista os melhores caminhos para o dia-a-dia; e participa de discussões sobre o futuro da cidade, do pedestrianismo, da mobilidade e do planejamento urbano.
A ideia é simples: desenvolver a cidade pelas pessoas para pessoas.
“Isso nada mais é que devolver a cidade a quem mora ali; a prioridade ao pedestre naturalmente levará as pessoas a repensar o uso do automóvel”, ela acredita. “São medidas muito mais eficientes, são convidativas, não proibitivas. Aumentar o tamanho de uma calçada aumenta o convite para se andar a pé, ao mesmo tempo que restringe o espaço do automóvel”, Letícia ressalta. Com essas experiências as pessoas vão descobrindo que podem agir na sua cidade, atuando onde moram, ou por onde passam, passando a se sentir parte da cidade, e também responsáveis por ela.
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