O projeto Nossa Cidade, do TheCityFix Brasil, explora questões importantes para a construção de cidades sustentáveis.
A cada mês um tema diferente.
Com a colaboração e a expertise dos especialistas da EMBARQ Brasil, as séries trazem artigos especiais sobre planejamento urbano, mobilidade sustentável, gênero, resiliência, entre outros temas essenciais para um desenvolvimento mais sustentável de nossas cidades.
A calçada e seus vários donos

Cada cidade adota um modelo diferente acerca da responsabilidade sobre a calçada. Abaixo, conheça algumas das diferenças e como funciona essa política em algumas localidades. (Foto: Asher Isbrucker/Flickr)
Planejamento, construção e manutenção. Esses são os três passos básicos para garantir o nascimento e a vida longa de uma calçada. Mas calçadas órfãs são frequentemente comuns porque a responsabilidade por essas tarefas não é clara. Vale lembrar que não é um problema exclusivo das cidades brasileiras. A incerteza quanto à guarda do espaço destinado à locomoção dos pedestres é um assunto que ganha força em tempos de trânsito saturado em todo o mundo.
A responsabilidade varia de cidade para cidade. Em algumas, é obrigação do proprietário do imóvel adjacente; em outras, do poder público. Ainda, existem casos onde o dever é dividido entre ambos.
No Brasil, a maioria dos governos municipais adota a política de passar a tarefa para os proprietários dos lotes, enfrentando descontentamento e, às vezes, surpreendendo os desavisados. Em uma enquete virtual realizada em 2012, 61,5% dos internautas opinaram que o papel de construir e manter as calçadas deveria ser das prefeituras, afinal, é um bem público. Se a prefeitura é responsável pela parte da via dedicada aos veículos, por que não é também pela via dos pedestres? As calçadas são menos importantes para as pessoas do que as demais partes da via pública?
De fato, andar a pé, ainda que corresponda à maior fatia da divisão modal, não é o meio de locomoção que mais ganhou adeptos nas últimas décadas. Mas muitas cidades, tentando reverter a tendência insustentável da troca de um par de sapatos por pneus, vêm usando ferramentas diversas para garantir a qualidade das calçadas, inclusive a negociação da responsabilidade sobre elas. Entre erros e acertos, cada cidade deve chegar à melhor divisão segundo suas particularidades.
O que segue são apenas alguns exemplos de cidades que estão buscando resolver os problemas de acessibilidade dos pedestres delegando a responsabilidade aos moradores ou ao poder público.
Cidades onde a calçada é responsabilidade dos moradores
Na cidade de Nova York, os proprietários dos lotes são responsáveis por instalar, fazer reparos e manter a calçada limpa. Os agentes do Departamento de Transporte (NYC DOT) inspecionam e notificam os responsáveis sobre os reparos necessários. Caso o conserto não seja realizado, a cidade pode contratar construtoras privadas para resolver o problema e enviar a conta para o proprietário. Através do site do NYC DOT, a população é informada de forma bastante didática sobre todos os detalhes do programa de requalificação das calçadas.
Informações no site NYC DOT incluem um vídeo sobre o ciclo de vida da calçada.
Da mesma forma, os moradores de São Paulo devem cuidar das suas calçadas. A prefeitura constrói e reforma os passeios das edificações públicas municipais e ao longo das vias estruturais. Em janeiro de 2008 foi aprovada a Lei nº 14.675/08 (Plano Emergencial de Calçadas – PEC) que inclui nas responsabilidades do município as calçadas que estejam em rotas que comportam focos geradores de maior circulação de pedestres como pontos de transporte coletivo e serviços públicos e privados, definidas no Decreto Municipal nº 49.544/08.
Em Porto Alegre, o projeto Minha Calçada: Eu curto, Eu cuido busca informar e conscientizar a população sobre essas responsabilidades no processo de conservação das calçadas, disponibilizando uma cartilha com informações ilustradas. A implantação do projeto é dividida em etapas, focando em um ou dois bairros por mês. O proprietário é notificado no caso de necessidade de reparos, o que deve ocorrer em até 60 dias. Caso contrário, a prefeitura executará a obra cobrando as despesas acrescidas de 30% de multa no IPTU do mês seguinte.

Porto Alegre é exemplo de onde a calçada é de responsabilidade do proprietário. (Foto: Prefeitura de Porto Alegre)
Na cidade de São José dos Campos a prefeitura criou um programa diferente para melhorar as condições das calçadas. No Programa Calçada Segura, quem trabalhou na conscientização dos moradores e comerciantes foi um grupo de 15 agentes comunitários com idades entre 61 e 70 anos. Os cabelos brancos inspiraram confiança em quem recebia os idosos, que informavam as dificuldades de locomoção que uma calçada mal construída poderia causar. Desde o início da campanha em 2007 foram realizadas cerca de 30 mil visitas, resultando em mais 120 mil m² de calçadas reparadas.
Cidades onde a calçada é responsabilidade da prefeitura
Na década de 70, o governo de Los Angeles recebeu uma boa verba federal e tomou para si a obrigação de realizar os reparos nas calçadas. Alguns anos depois o dinheiro acabou, e a cidade passou a ter dificuldades em mudar a legislação para devolver a obrigação para os proprietários dos lotes. Como resultado, em 2010 aproximadamente 7 mil dos 17 mil km lineares de calçadas de Los Angeles careciam de reparos. Hoje os proprietários realizam a maioria dos reparos, mas a cidade ainda é responsável por danos causados por raízes de árvores − um dos problemas mais frequentes.
Em Austin, Texas, a manutenção da calçada tornou-se responsabilidade pública em meados dos anos 90, mas nunca teve uma estratégia de financiamento que garantisse receita suficiente para um alto nível de acessibilidade. O Americans with Disabilities Act – ADA (Ato das Pessoas com Mobilidade Reduzida, em tradução livre), assinado em 1990 nos Estados Unidos, é um fator determinante para continuar promovendo o direito de passagem para todos na cidade.
Washington D.C. exibe lindas calçadas de responsabilidade do poder público. Os moradores podem requerer a manutenção de qualquer calçada especificando o local, o tipo de pavimento e a severidade do problema. A prefeitura garante investigar o ponto em dez dias úteis, mas adverte que reparos permanentes dependem da disponibilidade de recursos.
Londres repara cerca de 1.500 quilômetros de calçadas por ano, investindo mais de 1 milhão de libras. A expectativa é que os recursos disponíveis possam aumentar, possibilitando à cidade melhorar os 4 mil km com deficiências identificadas. Reparos permanentes podem demorar até quatro anos.
Os moradores de Madrid também enfrentam atrasos nos reparos das calçadas. O Plano de Gestão Integral de Infraestruturas Viárias prevê remodelar por completo quase 4 milhões de m² de calçadas sendo 2 milhões de m² até 2016. Com esse investimento, a prefeitura também espera ter mais controle e exigência na qualidade das infraestruturas, permitindo participação ativa dos madrilenos.
Quando a responsabilidade é compartilhada
Em San Diego, Califórnia, o reparo de estragos causados por acidentes veiculares, danos no sistema público de coleta e abastecimento de água, e raízes de árvores públicas é de responsabilidade da prefeitura. Quando o estrago for consequência de tráfego de automóveis privados, raízes de árvores ou sistemas de drenagem particulares, a responsabilidade é do proprietário. A manutenção dos desgastes causados por intempéries também é financiada pelo proprietário, porém com apoio de um programa da cidade que cobre 50% dos custos, fatia que deve ser diminuída em 2015 para 25%. Em 2014, a prefeitura organizou um grupo com estudantes de engenharia de duas universidades da cidade para caminhar mais de 8 mil km em busca de reparos a serem feitos.

Estudantes da Universidade da Califórnia e da Universidade Estadual de San Diego realizaram a inspeção das calçadas na cidade. (Foto: Katie Schoolov/KPBS)
A também americana Memphis, Tennessee, prevê assistência pública para proprietários de lotes que não têm condições financeiras de arcar com a manutenção da calçada, desde que esteja em uma das categorias: 1) renda total da família menor ou igual a 25 mil dólares; 2) invalidez total; 3) família abaixo da linha da pobreza. A cidade estima que cerca de 2% da população se encaixe nesses quesitos.
Existem diferentes opiniões sobre cada um dos tipos de divisão das responsabilidades. A discussão envolve não apenas questões econômicas, mas também técnicas e políticas. Enquanto as leis municipais continuarem como estão, vale lembrar de colocar em prática a cidadania, e isso inclui cuidados com os bens de uso coletivo. A vigilância das calçadas pela população e a utilização das ferramentas para apontar problemas nas cidades são essenciais para a melhoria dos espaços públicos urbanos.
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Este post foi escrito por Paula Manoela dos Santos, gerente de Mobilidade Ativa do WRI Brasil.
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